António
de Cértima é, sem discussão, um escritor considerado secundário pelo lugar que
ocupa no panorama da literatura portuguesa do século XX. Contudo, aparece
citado por vezes no contexto dos movimentos políticos que agitaram o país nos
anos ’20 e que
determinaram o fim da primeira República em 28 de Maio de 1926. É figura que
tende a surgir nas abordagens de cunho historiográfico relativas àquele período
porque Cértima se envolveu realmente, de forma notada, nos acontecimentos
político-sociais que marcaram a década, de tal modo que é recordado não como
autor de uma obra literária significativa (conforme à evidência pretendeu no
período da sua maturidade) e sim, por uma espécie de vingança de sorte adversa,
como um dos protagonistas das suas lutas e clivagens. Viveu de perto esses
acontecimentos em Lisboa, para onde se mudara, e deles se beneficiou, pois pela
sua adesão ao sidonismo e, sucessivamente, ao movimento de Maio de 1926, pôde
ingressar, nesse mesmo ano, na carreira diplomática. Foi nomeado vice-cônsul no
Suez, cônsul em Dacar e igualmente, durante muitos anos, em Sevilha, até 1949.
Com
algum motivo, portanto, nas obras de consulta usuais (enciclopédias,
dicionários), encontramos nótulas relativas a Cértima, por vezes tão
informativas que vão ao ponto de indicar muitos dos títulos principais das
dezenas de livros de poesia, ficção, intervenção política, viagem, estudo e
ensaio, que publicou entre 1914 e 1970. No entanto, é precisamente neste ponto
que o leitor avisado fica tolhido pela confusão.
As
nótulas incluídas sobre este autor em seis dessas obras de consulta, aqui
contempladas por serem muito correntes, contêm erros ou inexactidões
lamentáveis. Vamos folheá-las num breve relance.
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
(vol. 39, Apêndice, 1959) dá Cértima
como nascido em lugar do mesmo nome, freguesia do Troviscal, Oliveira do
Bairro. Ora não existe lugar com tal nome (Cértima) naquela freguesia, nem
sequer em todo o concelho e nem mesmo em toda a Bairrada; existe, sim, o rio
daquele nome. Será um rio lugar de nascimento? Será, se esse
nascimento for apenas literário. Por outro lado, Cértima nasceu realmente no
concelho de Oliveira do Bairro mas não na freguesia do Troviscal.
A
enciclopédia indica também que o autor nasceu em 1895, quando de facto a data e
o lugar correctos são: 1894 (27 de
Julho) e Giesta, lugar da freguesia
de Oiã.
Outro
lapso do redactor da mesma nótula dá o autor da Epopeia Maldita - O Drama da Guerra de África (1924) como «tendo
abandonado a carreira diplomática para se
dedicar à actividade comercial» (sic,
sublinhado meu), actividade que realmente ele nunca exerceu; na adolescência,
sim, apenas ajudou os pais na loja que possuíam no lugar natal. Em 1959, ou uns
meses antes de tal se publicar, teria sido fácil localizar o autor na capital e
obter informação mais rigorosa e fidedigna. Cértima, finalmente casado e de
novo a residir em Lisboa, consagrava-se então à elaboração da sua obra
literária de plena maturidade e era autor notado. Uma amostra: em 1947 saíra o Sortilégio Senegalês, livro em 4ª edição
em 1949; neste último ano publicou ainda Baladas
de Sevilha na Primavera, poemas em castelhano, e Trópico de Cancer, versos; em 1951, Colóquio com a Morte - Ensaio sobre a Semana Santa sevilhana; em
1955, Notícias de Anto e de Purinha -
António Nobre ou a Poesia sob o signo da Morte e do Amor, e em 1956, Trajectória Sem Fim, antologia poética
pessoal.
Peguemos
noutra obra de consulta. A nótula inserida na Enciclopédia Verbo (vol. 19, Suplemento,
1979), assinada por Alves Pires, repete os erros da enciclopédia anterior
quanto ao ano e lugar do nascimento de Cértima. Todavia, abona-o com os títulos
dos seus livros à data mais recentes.
A 3ª
edição do Dicionário de Literatura,
dirigido por Jacinto do Prado Coelho (Figueirinhas, Porto, 1983), que situa
exclusivamente o autor no quadro das viagens africanas e das narrativas de
guerra 1914-18 no «continente negro», insiste (nos vols. 4 e 5) em 1895 como o
ano do seu nascimento.
A Moderna Enciclopédia Universal - Lexicoteca,
do Círculo de Leitores (vol. 5, 1986), continuou maquinalmente a dizer o autor
nascido naquele ano (e não em 1894, conforme documentos inquestionáveis), no
mítico lugar de Cértima e não no da
Giesta, Oiã, concelho de Oliveira do Bairro, crendo talvez que o erro acabaria
por ficar certo por tanto se repetir sem emenda. Mas a nótula já referencia o
falecimento de António de Cértima em 1983 (20 de Outubro), no Caramulo, citando
nomeadamente o seu romance Não Quero Ser
Herói, de 1970.
A quinta
obra de consulta mais em uso que tiramos da estante, o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (vol. III, 1990),
persiste, com indefectível pertinácia, em declarar António de Cértima nascido
em Cértima e, sempre, em 1895, para o
colocar perto de Julião Quintinha, Carlos Selvagem, Augusto Casimiro e outros
que conheceram a realidade africana durante o primeiro quartel do século XX.
Ainda assim, valoriza a breve entrada com uma lista abundante das suas obras.
A última
obra de referência que andamos a folhear é a Biblos - Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa
(vol. 1, 1995). A nótula que insere, assinada de novo por Alves Pires, regista
que se trata de um «escritor de facetas várias, reveladas em obra extensa, num
estilo muito fluente e de vibração fácil». Mas reincide nas duas inexactidões
iniciais: altera o lugar e o ano de nascimento. O pormenor é mais de estranhar
e lamentar porquanto viera antes a lume um livro, preparado pelo signatário
destas linhas, que estudava e estabelecia os aspectos principais da sua vida e
obra (António de Cértima - Vida, obra,
inéditos, ed. Figueirinhas, Janeiro de 1994, 215 pp). Saíra no começo de um
programa comemorativo do centenário do nascimento de Cértima que decorreu
durante meses sobretudo em Oliveira do Bairro e que incluiu no fim a edição de
outro volume, recolha de um ciclo de conferências então organizado sobre o
autor em foco.
Perante
as informações contidas nestas seis obras de consulta, o leitor concluirá sem
dúvida que enciclopédias e dicionários se decalcam e repetem incansavelmente,
pelo que os deslizes de um redactor apressado que escrevia nos idos de 1959, há
quarenta e tantos anos, ainda hoje estão à espera de correcção. Não admira,
assim, que os estudiosos em geral, e até bons investigadores, continuem a ter
de fiar-se em dados incertos ou incorrectos, sejam estes de pormenor ou fundamentais,
como se meros factos biográficos pudessem ser de problemático reconhecimento.
É certo
que a vida e a obra literária do autor em foco se imbuíram de opacidades e
ambiguidades importantes aos olhos de quem se debruce atentamente sobre o
percurso existencial do homem querendo ao mesmo tempo interpretar adequadamente
o que escreveu. A tal dificuldade não será estranho o feitio reservado, por
isso enigmático, que Cértima sempre revelou inclusive quanto aos alcances
últimos de certas páginas, por exemplo de Não
Quero Ser Herói ou de Soldado, Volta!
Por algum motivo, há quem o integre sem hesitar no campo ideológico-político do
salazarismo e do regime da ditadura e há quem duvide um pouco da adesão real
que desde 1949 (ano em que desistiu do consulado em Sevilha) ele terá
manifestado, e sobretudo após a eclosão das guerras coloniais que o país
enfrentava em África. Dele se desconhece ao certo, por ausência de
documentação, por exemplo, que patente alcançou no período militar, ou que grau
académico atingiu, ou em quantos jornais colaborou.
Eis
porque será especialmente de registar uma nota de rodapé que se encontra no
estudo António Ferro - Espaço Político e
Imaginário Social - (1918-32) (Cosmos, 1994). O seu autor, Ernesto Castro
Leal, identifica Cértima (p. 148) em termos resumidos mas, enfim, sem dúvida
algo surpreendentes. Transcrevemos na íntegra o que nos importa:
«Escritor,
diplomata e político. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, sem concluir os estudos. Em 1916 foi mobilizado para Moçambique, no
contexto da Primeira Grande Guerra. A partir de 1918, faz crítica literária no Diário de Lisboa e envolve-se na
actividade política do campo nacionalista autoritário, apesar de, em 1927, ter
feito a apologia da união dos republicanos e do método rotativo no exercício do
poder, ao mesmo tempo que animava a criação de uma “organização civil de apoio” à Ditadura Militar instalada em 28 de Maio de 1926.
Colabora, nessa época, no Portugal
(1926-27), jornal dirigido pelo revolucionário do 31 de Janeiro de 1891,
António Claro, e é secretário de redacção de A Cidade (1927), periódico que tinha como director Carlos Faro.
Cônsul de Portugal no Cairo (1925), em Dacar (1926) e em Sevilha (1938),
abandonando a carreira diplomática para ingressar na SACOR, onde dirige o
departamento de publicidade. Em 1968 é eleito membro da Academia Internacional
do Mediterrâneo.»
Naturalmente,
esta nota repete que Cértima nasceu «em 1895», mas o que avulta no texto são
outros dados substanciais. À vista dos documentos do seu espólio já estudados,
com base nos quais foi escrito o livro saído no Porto em Janeiro de 1994,
ressaltam discrepâncias que não deixam de ser curiosas. Vejamos. Não fora
notada ainda a sua colaboração, decerto marcante, como crítico literário no Diário de Lisboa «a partir de 1918».
Tanto quanto se sabe, Cértima só em 1922 se mudou para Lisboa, onde principiou
a escrever intensamente em variados periódicos da capital (antes colaborara na
imprensa da Bairrada natal e algo na do Porto). Por outro lado, sabe-se que
recebeu passaporte diplomático em Março de 1926 como vice-cônsul no Suez,
cargo, aliás, que parece minimamente ter exercido. Passado um ano, em Março de
1927, foi nomeado cônsul em Dacar, Senegal, e em Junho de 1932, passados cinco
anos, foi transferido para Sevilha. Repare-se nas discrepâncias, não apenas
destas datas, introduzidas pela nota de Ernesto Castro Leal. Seria útil
conhecer as bases documentais em que se apoiou!
Por
mim, mantenho na íntegra o que os documentos demonstram e que reafirmo,
nomeadamente no livro Figuras das Letras
e Artes da Bairrada (Campo das Letras, 2001), uma espécie particular de
dicionário de autores «regionais» no qual figura uma entrada sobre António de
Cértima.
Arsénio Mota
[NOTA: Cópia de texto incluído no meu livro Divertículos, edição única, digital.]