quarta-feira, 11 de abril de 2012

Oliveira do Bairro (Giesta, Oiã), 27 de julho de 1894 – Caramulo, 20 de outubro de 1989


Apresentação

António de Cértima é, sem qualquer dúvida, a figura literária de relevo mais notável nascida no concelho de Oliveira do Bairro (terra natal também do redactor destas linhas). Mas não tem ali a consideração que merece nem ocupa o lugar que fez seu pelos méritos da cultura e o nível estético das obras que escreveu. Demonstrará o caso que em comunidades estreitas não cabem as suas maiores figuras?
Como autor de livros, Cértima iniciou o percurso aos 20 anos, em 1914, com um «quadro dramático», livrinho assinado por António Augusto Cruzeiro. No mesmo ano inseriu pelo menos um poema num jornal regional adoptando já o nome por que ficou conhecido. A sua bibliografia global abrange trinta títulos – poesia, conto, romance, narrativa, crónica, viagem e estudos diversos – alguns dos quais (nos anos ‘20 e ‘30), de vincada intervenção política, tiveram no seu tempo sucessivas reedições, com destaque para Epopeia Maldita, narrativa de 1924 (4ª edição, 1925).
As três últimas obras que publicou datam de 1970 (portanto já com o regime da ditadura em crise agravada pelas três guerras coloniais): o romance Não Quero Ser Herói e duas plaquetes poéticas, Soldado, Volta! e Epístola a Job. Atingia então a idade de 76 anos. Em seguida, a evolução sociopolítica havida com a democratização do país arredaram-no sem remédio da ribalta nacional em que desejava manter-se, forçando-o a deixar inéditos vários livros.
A finalidade deste blogue consiste em recordar a primeira parte da existência de Cértima que decorre até 1922, ano em que o jovem poeta e jornalista, com 28 anos de idade, sai em ruptura com o seu ambiente natal para se radicar em Lisboa. É o período em que mais obscuridades obstam a uma visão clara do seu percurso concreto, conforme eu registo no livro António de Cértima – vida, obra, inéditos (Figueirinhas, Porto, janeiro, 1994), publicado na abertura das comemorações do centenário do seu nascimento, por mim organizadas com apoio da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro e da Fundação Eng António de Almeida (Porto); o programa comemorativo, extenso, encerrou com a edição, em Julho seguinte, do livro com o ciclo de conferências proferidas por vários autores.
O período tem para nós vivo interesse porque foca a juvenília de Cértima, portanto a sua formação como homem e como escritor – o mais destacado literato que a nossa terra já teve para se honrar. Todavia, o escritor voltou ao esquecimento de que as comemorações quiseram resgatá-lo. Relembrando-o, pretende este blogue – com total independência ideológica – recolocá-lo em lugar público principal na nossa terra, onde já nem Cértima se vê em figura (busto em bronze da escultora Irene Vilar inaugurado aquando do centenário e surripiado em data recente por larápios do bronze).



O berço das letras

O gosto pelas letras do moço António terá surgido quando, ainda estudante, começou a namorar e a dedilhar a corda lírica. O comboio expandia os seus contactos até Aveiro e Porto, cidade onde tinha familiares. Mas salienta-se o fator decisivo: a influência estimulante que o padre Acúrcio Correia da Silva sobre ele terá exercido.
Acúrcio publicou os primeiros poemas em 1912, ao sair do Seminário de Coimbra com 23 anos, e no ano seguinte ficou colocado na paróquia de Sangalhos. As relações de amizade entre Cértima e o padre Acúrcio, cinco anos mais velho, desenvolvidas a partir de 1913, ficaram desde então a marcar com pedra branca o primeiro movimento de afirmação cultural da Bairrada.
Giesta distava pouco do Cercal de Cima, onde o padre nascera e morava, e mesmo Sangalhos ficava perto fosse de bicicleta ou a pé. Aqueles lugares e toda a envolvência bairradina viviam então num remanso rústico que hoje, volvido um século, só poderemos imaginar. Apesar de tudo, os dois poetas e conterrâneos assinalaram no terreno a mudança escrevendo nos jornais da redondeza – Ílhavo, Águeda, Anadia, Oliveira do Bairro, Mealhada – em termos que propunham como tema eleito a sua «pátria pequenina».
De facto, saiu em 20-06-1914, no jornal ilhavense «O Brado», o que será talvez o primeiro poema de Cértima na imprensa. Admite-se que tal se deva ao padre poeta, pois já ali escrevia amiúde, e pela sua mão o neófito prosseguiu publicando em 04-07-1915 outra poesia, datada de 1913, com dedicatória à «Plêiade Bairradina». Ora, neste ano de 1915, publica Acúrcio Seroadas Fulvas, obra tão inovadora que Manuel Rodrigues Lapa (em 1925, era bibliotecário na BN e professor liceal em Lisboa) a proclamou «o livro mais bairradino da Bairrada» pelo «espírito regionalista» que no final prometia.
Importa reter a referência de Cértima à «plêiade», datada de 1913, a indicar que o neófito já se incluía no grupo dos poetas bairradinos animado pelo padre Acúrcio. Entretanto, convém sublinhar que nos jornais da época se encontra o que dessa época perdurou e é consultável no nosso tempo (pois outras fontes documentais se sumiram ou são inconclusivas), assinalando quanto o modelo jornalístico então praticado diferia dos modelos actuais. Entre algumas outras produções literárias, aquelas folhas inseriam bastantes poemas de variados autores, consagrados ou novos, por vezes de apreciável extensão. Mas talvez o mais inesperado seja hoje perceber a circulação intensa que esses poemas atingiam nas camadas letradas locais, onde eram frequentemente lidos, decorados e recitados com gosto.


Dois poetas de braço dado

António de Cértima dá os primeiros passos do seu percurso em ligação cordial com ao padre Acúrcio e outros poetas das redondezas. Entre 1915 e 1918, a «plêiade» não passava decerto de agrupamento aleatório, uma espécie de nova arcádia ideal, composta pelos autores que apareciam nas páginas dos periódicos regionais. A conhecida plaquete publicada em Setembro de 1918, com poemas de alguns deles (reuniram-se numa espécie de outeiro), indicia o avanço da ideia mas a «Plêiade Bairradina» teria que esperar um pouco para ganhar consistência.
Realmente, Cértima entra em serviço militar, embarca em Junho de 1916 para Moçambique como expedicionário e volta com o armistício, em 1918, para colaborar na plaquete. Tem 24 anos e um projecto de vida a realizar. Pensa decerto em criar raízes no chão natal, ligando o mais possível a escrita literária à prosa da vida, de braço dado com o amigo padre Acúrcio e outros versejadores que abundavam na região.
Nesta conjuntura, inicia a publicação o jornal «Gente Nova» em 22-03-1919, na vila de Oliveira do Bairro. Nas suas páginas acolhe textos de Acúrcio Correia da Silva, sob pseudónimo, entre outros companheiros mais ou menos próximos, e terá Cértima como redactor junto com um irmão do padre Acúrcio, o Manuel. É jornal concorde com o título. Animado por um grupo bastante juvenil, dispunha-se a erguer bem alto a bandeira da «região dos pâmpanos» (expressão cunhada pelo advogado Manuel dos Santos Pato, da Barreira, Bustos), no sentido inaugural apontado pelo autor de Seroadas Fulvas, em 1915.
E, corajosamente, o grupo avançou. Em 28-06-1919, com o seu nº 15 (corrigindo o 14, repetido), o jornal quis ser «órgão da Plêiade Bairradina», pois, na verdade, era obra colectiva. Em Dezembro, o jornal avançou mais: com o nº 29, passou a colocar na primeira linha do cabeçalho, onde inscrevia local e data de edição, não Oliveira do Bairro, sim «Bairrada». A região, como um todo orgânico com identidade própria, ganhou ali pública afirmação.
Parece óbvio o papel relevante e mesmo pioneiro que o jornal «Gente Nova» obteve ao guindar a região à categoria de tema e de lema. Daí ser publicação de referência, apesar de ter tido curta vida, na área da afirmação nascente da identidade regional. Neste quadro, destaca-se o que Sálcio Bairrada, pseudónimo dos mais conhecidos do padre Acúrcio, escreve no referido nº 15, de 28-06-1919, no artigo intitulado «A ideia bairradista».
Acúrcio lembra o seu «sonho de Arte» esboçado havia quatro anos no jornal ilhavense «O Brado» de 15-03-1915, «o grande plano, grande pelo alcance da ideia, e pela amorabilidade da intenção», que seria: «Criar dentro da Bairrada uma consciência artistica, e fazer que nesta fraternizem todos os espiritos anciosos de perfeição, ebriosos de beleza – eis o nosso grande sonho.» Isto basta para atestar quem foi o autêntico promotor da ideia da «Plêiade» e a data do respectivo lançamento.


Fica igualmente atestada, pela mão do próprio Acúrcio, a participação íntima que Cértima com ele desenvolveu no âmbito do projecto. Era preciso, escreve ele, pôr «em ordem programática os traços gerais da nossa idéa, dando feição estatutiva aos pareceres de alguns de nós, por varia vez emitidas nas palestras de arte amiga e intimamente realizadas» - e disso se incumbiu Cértima. Acúrcio transcreve o documento (de inegável interesse mas, curiosamente, pouco frequentado), dando-o a ler no jornal. Reproduzo somente o título e o sumário dividido em três partes:

«Pleiade Bairradina
NUCLEO DE ACÇÃO LITERARIA
A – O seu fim; B – Meios com que conta; C – O que desejaria fazer»

Curioso será o cotejo das duas personalidades unidas pelo amplexo da amizade. Acúrcio Correia da Silva derramou-se abundantemente nas páginas da imprensa da zona, manuscrevendo de corrida laudas e mais laudas em papéis improvisados. Nesses jornais ficou, afinal, a sua obra maior, isto é, em condições de merecer alguma atenção. Para cúmulo, assinada com pseudónimos pouco identificáveis e dispersada por páginas hoje raras, de papel áspero e amarelecido. Eis por que não aparece mão salvadora que seleccione esses escritos para no-los dar em volume legível. Por outras palavras, o padre-poeta ficou sem «obra» (corpus representativo) à vista. O busto que se vê em praça de Oliveira do Bairro homenageia sobretudo a memória do «jornalista» com a fama atingida pelo seu nome.
Acúrcio era de natureza generosa, desprendida, voluntariosa. António de Cértima, por seu turno, era indivíduo concentrado e complexo, de asas abertas para largos voos de esteta aspirante aos espaços e requintes do mundo. Combinavam-se de forma tão feliz que as suas relações cordiais perduraram até Acúrcio desaparecer, em 1925, com 35 anos. Tornou a falecer, recentemente, quando uns paroquianos locais o tomaram como manequim e vestiram em privado com farpelas ideológicas do seu particularíssimo gosto, retirando-o nessa medida do espaço público.


A Plêiade Bairradina

Do que antecede se retira em confirmação que Cértima aderiu e acompanhou «por dentro» o desenvolvimento da ideia, de modo que aos dois amigos e conterrâneos deve ser atribuída, por igual, a criação da «Plêiade» embora aos opinantes de paróquia isso custe.
Realmente, a ideia desenvolveu-se. Em 24-03-1919 o grupo tinha o «hino da Bairrada» composto por Albano Ferreira da Cruz, administrador e editor do jornal «Gente Nova», sobre letra de Acúrcio. Numerosos literatos entusiastas ampliavam o grupo, participavam nas suas reuniões e espalhavam por outros jornais cânticos e louvores imbuídos de «espírito regionalista» glorificador da «pátria pequenina». A «Plêiade Bairradina» ganhou força e prestígio memoráveis, congregando na defesa da mesma causa, naturalmente, um sortido de tendências contraditórias. O pormenor avulta tendo presente o fervilhante ambiente social da época, as fricções entre reacionários católicos e republicanos, o golpe de Sidónio Pais e outros sucessos nacionais, o descrédito crescente de partidos e políticos, a crise da República e do país. Mas Acúrcio, no que escrevia e sobretudo enquanto padre, cuidou sempre de se distanciar das questões meramente políticas então ao rubro, percebendo quão estéreis e daninhas essas questões seriam para o que mais em geral importava.
A Bairrada ergueu-se e ganhou consciência de si própria, da força que sentia a latejar. Não a sentiria o Terreiro do Paço e no entanto a região afirmava-se com um vigor tão convincente que deu lugar à ambição. Por que não haveria de ter a Bairrada representante em Lisboa? Pretensão funesta! Desencadeou discussões e disputas.
António de Cértima insurgiu-se. Acharia que era ele a mais adequada escolha para tal incumbência, pois Acúrcio preferia marginalizar-se. Outros companheiros do grupo terão multiplicado as rivalidades. O movimento cultural da região, ao pretender conquistar peso político em vez de puro peso cultural, esboroava-se. A situação encrespou-se ao aparecer, com chancela da «Plêiade Bairradina», o livro Bodas de Vinho – poemas da Força e da Alegria (Coimbra, 1919). O autor, Cértima, ia nos 25 anos e, à evidência, desejaria legitimar com a obra o seu talento e arte em dionisíacas odes ao vinho da «região dos pâmpanos». As expectativas, porém, saíram frustradas. O livro motivou apreciações pouco lisonjeiras devido, por exemplo, ao entusiasmo pela fruição sensual que exprimia, ao seu excesso de helenismo clássico vertido em festa pagã dos sentidos entre libações ou louvores a Baco. Ferido no seu orgulho, António de Cértima indispôs-se com a terra natal e região. Republicou o livro em 1943 e, em desforra, mudou-lhe o título para Bodas Helénicas, a significar que deixava para trás o tema bairradino ansiando por mais beleza em comunhão com a terra e os seres vivos.




A ruptura



Entretanto, o jornal «Gente Nova» parou de vez em 1920. O projetco da revista «Bairradina», apoiado pelo jornal, também morreu e o mesmo destino teve «Talábriga», que não passou do primeiro número. Cértima aguentou a situação, mantendo-se ligado à «Plêiade» e em particular ao padre Acúrcio, mas amiudando saídas para Aveiro e Porto. Em 1922, tendo acumulado experiência de prática jornalística e algum renome literário, já com 28 anos, resolveu abalar e fixar-se em Lisboa. Na capital, trabalhando na imprensa, consumou uma dupla ruptura: com a «pátria pequenina» e, por outro lado, com a sua (afirmada) atitude apolítica vagamente republicana e democrática. Mas a «pequena pátria» ainda foi contemplada, em 1925, com a publicação em Ílhavo de Volúpia do Mar, ficção localizada na Costa Nova. Em seguida optou por um certo mundanismo intelectual e aliou-se a militares e correntes políticas reaccionárias em voga na capital que levaram por fim ao estabelecimento do Estado Novo, ou seja, ao regime da ditadura de Oliveira Salazar. A sua entrada na carreira diplomática, em Março de 1927, primeiro em Dakar e logo em Sevilha, concretiza-se neste quadro de adesões políticas estratégicas. Abandonou finalmente a carreira para retornar a Lisboa em 1949. Tinha 54 anos, afirmara-se enquanto escritor e decidira casar-se.



Nota final

Este breve resumo, irremediavelmente imperfeito, da primeira fase do percurso de Cértima no berço em que nasceu, associa-o muito de perto, conforme vimos, ao padre Acúrcio. Mas Cértima é aqui colocado em especial realce para que fique de raízes bem inseridas, isto é, bem à vista, em Oliveira do Bairro e na Bairrada, região que o ignora ou desconhece. Todavia, não se dispensou de levar consigo estas suas origens, pois, a morar em Lisboa, Cértima continuou a escrever sobre temas regionais.
Nesta oportunidade, lembro uns factos que evocam o contexto em que surgiram as comemorações do seu centenário (sublinhando a propósito o aparecimento, em 1988, do segundo movimento cultural bairradino e a existência, desde 1990, de uma AJEB, Associação de Escritores e Jornalistas da Bairrada, por mim proposta e animada com o objectivo único de restaurar a identidade regional mas, em 2001, tristemente sepultada por quem prefere a paz rasa dos cemitérios ao trinar livre dos pássaros).
Concebi o projecto e realizei-o em ligação com a viúva de António de Cértima, D. Maria Arminda Lacerda de Cértima. A senhora recebeu-me em sua casa repetidas vezes e acompanhou todo o programa comemorativo. Soube logo que Oliveira do Bairro ia ter biblioteca municipal e aceitou a minha sugestão de nos doar toda a biblioteca e restante espólio do escritor. O espólio pessoal foi-me entregue; os livros das suas estantes (encheram um furgão que ajudei a carregar) foram entregues à Câmara, na pessoa do seu presidente, Acílio Gala.
A elaboração do livro sobre vida e obra de Cértima requeria necessariamente o manuseio do seu espólio e, por outro lado, era óbvio que a Câmara se interessava somente pelos livros (destinados à Biblioteca Municipal, em construção), de modo que, encerradas as comemorações, fiquei com uma dificuldade para resolver: o destino a dar àquele espólio, do qual sempre me considerei mero depositário. Dificuldade séria: levou 18 anos a solucionar-se!
Há poucas semanas, o espólio do mais eminente escritor de Oliveira do Bairro foi por mim entregue à Biblioteca da Universidade de Aveiro, onde poderá ser consultado. Além da sua obra global publicada, inclui originais de livros, documentos, diários e manuscritos, recortes, fotografias, etc., e mesmo originais de livros inéditos. Os textos de dois destes originais - uma colecção de contos e uma peça de teatro - foram por mim digitados e estão colocados em plataforma na Internet, em formato ebookTudo isso está «postado» neste blogue com links em «Leituras», na coluna ao lado. Acrescentei um link para o filme sobre vida e obra de Cértima, depois de, felizmente, ter vencido por fim uma dificuldade técnica surgida com o formato requerido pela plataforma que o albergaria - o Youtube [mas o filme foi retirado, em 30-10-2013, devido a uma reclamação de direitos de autor [4 min. de música clássica em «fundo» de oradores].
Lista dos títulos «postados»:

Os Que Sentem e os Que Pensam, contos
Ela e o Homem, teatro
Chama, Semente de Poesia - quinze poemas de amor, de autoria anónima

Na entrada da colecção de contos, Cértima procede a uma «arrumação» por rubricas de todas as suas obras, incluindo as inéditas, que vale a pena apreciar; na peça de teatro, as obras do autor aparecem listadas como é de uso. O filme resulta do vídeo que realizámos no quadro das comemorações. Os poemas de amor, de autoria anónima, feminina, um curioso manuscrito (texto em mini-ebook com título da minha responsabilidade), são parte do seu espólio pessoal e nele devem continuar. Finalmente, senti a conveniência de colocar aqui uma reprodução, ainda que singela, do vibrante «Hino da Bairrada», de modo que podemos agora ouvi-lo no Youtube executado ao órgão por Luís António J. C. Roseta, a quem agradeço.

A rematar: tal como o padre Acúrcio Correia da Silva e António de Cértima se associam em destaque na primeira afirmação cultural da Bairrada, assim agora também eu acompanho Cértima. Ao seu espólio doado à Biblioteca da Universidade de Aveiro acrescentei o meu próprio espólio (parcial, com incidência regional). Na mesma ocasião, entreguei um pequeno monte de papéis do padre Acúrcio (meras relíquias para juntar à sua biblioteca ali presente) e a minha estante de autores regionais (outra diversa livraria pessoal fizera-a seguir antes para o Museu do Neo-Realismo, V. F. de Xira) além de vária documentação, a colecção das minhas obras publicadas e outras inéditas, tendo adiado para mais tarde a doação do meu restante espólio ainda em utilização. Enfim, três autores bairradinos, do concelho de Oliveira do Bairro, que quiseram erguer bem alto a cultura bairradina, têm os espólios ali guardados.

Desejaria ficar por aqui. Impõe-se-me porém o dever de deixar afirmado, com clareza máxima e a convicção de quem tem provas à vista, que nem o padre Acúrcio Correia da Silva nem António de Cértima se declararam monárquicos integralistas. Foram-no tanto como eu, que sempre fui republicano e democrata. Não sugiro que ambos pudessem partilhar das minhas ideias, nada disso. Digo que sem heurística nem honestidade intelectual capaz, qualquer discurso produzido se invalida e anula. Mas pretende colar ao padre Acúrcio e a Cértima aquele rótulo ideológico-político um avoengo grupinho de saudosistas cujo acólito local, como propagandista de feira, se atreve a atribuir aos dois respeitáveis amigos já desaparecidos as suas pessoais e muito particulares inclinações, sem estudar criteriosamente os documentos existentes, já conhecidos, que nem interpreta correctamente e, fantasiando, chega a deturpar. Eis tudo quanto aqui cabe dizer, ficando eu disponível para os aprofundamentos que forem suscitados.


Mas ainda acrescento…

Não conheci pessoalmente António de Cértima nem com ele tive o menor contacto. No entanto, li todos os títulos que publicou, os seus inéditos, imensa papelada: originais de obras, recortes de imprensa, documentos pessoais, cadernos privados, cartas, fotografias, etc. Estudando depois o acervo documental que seleccionei e de sua casa trouxe comigo, cheguei a sentir o cheiro do tabaco e algum do próprio hálito da pessoa que impregnava os papéis.
Devassava-lhe realmente a intimidade, não na atitude pulcra do juiz que busca motivos de condenação, antes de quem assiste de fora procurando compreender o homem como ele foi integrado na sua circunstância. Acreditando que no universo da cultura realizada com genuína criatividade cabem perfeitamente todas as ideologias. Recusando-me a sentenciar, logo a absolver, por rejeitar dois modelos de abordagem parcial: a sincrónica (de colagem à figura no seu tempo); e a diacrónica (de apreciação da figura no seu tempo com visão atual, de alguém que vive hoje). De facto, não sou do tempo de Cértima e muito menos do padre Acúrcio; e assim me venho cingindo, como é de norma, à apreciação da valia dos documentos e pouco mais.
Ora a expressividade dos documentos que dos dois amigos bairradinos se conhecem, valendo caso a caso o que valem, está longe de se esgotar. Persistem nas suas vidas e obras aspectos interessantes ou mesmo vinculativos por explorar. Porém, em vez de exegetas escrupulosos e dedicados dispostos à exploração, acontece, conforme se vê, o contrário – e eis uma torpe confusão nada respeitosa.
Deve-se este acrescento à intervenção de voz amiga que me persuade a documentar, ao menos com as evidências essenciais, as fontes que interessa divulgar para a correcta apreciação do assunto: foram realmente o padre Acúrcio e Cértima monárquicos integralistas? Há documentos a prová-lo? Neste sentido, aqui ficam cinco imagens do jornal monárquico «Correio da Bairrada» nº 1, de 11 de abril de 1925, com os textos em foco (clique para ampliar). As iniciais A. C. correspondem indubitavelmente a Abel Condesso, padre monárquico e conhecido militante do reviralho, não a António de Cértima. O texto deste autor (ver ali a notícia «Falta de espaço») saiu no nº 2 do mesmo jornal e ficou recolhida no livro Alma Encantadora do Chiado (1927), pelo que o In memoriam (1959) de padre Acúrcio não o reproduziu.
Quem saiba ler de olhos limpos dispensa mais explicações. E ponto final: o argumentilho restante, meras conjecturas sem apoio, nem comentários merecem.
Arsénio Mota














OBRAS PUBLICADAS PELO AUTOR

 Marília, quadro dramático, Coimbra, 1914, 30 pp (assina António Augusto Cruzeiro)
Bodas de Vinho –poemas da Força e da Alegria, ed. Plêiade Bairradina, Coimbra, 1919, 128 pp
O Fado das Capas – Serenata de amor, plaquette, Aveiro, 1920
Epopeia Maldita, ed. do Autor, Lisboa, 1924, 284 pp, 4ª ed, 1925
Volúpia do Mar, noveleta, pref. de Celestino Gomes, ed. Beira Mar, Ílhavo, 1925, 17 pp
Legenda Dolorosa do Soldado Desconhecido de África, com «Inscrição» de Afonso Lopes Vieira, plaquette, ed. do Autor, Lisboa, 1925, XVI pp, 5ª ed., 1926
O Ditador – As crises, o Homem, a Nova Ordem, ed. Livª Rodrigues, Lisboa, 1927, 200 pp, 4ª ed., 1928
Alma Encantadora do Chiado, ed. Atlântida, 1927, XXIII+270 pp
Jardim das Carícias, poemas, ed. J. Rodrigues, Lisboa, 1928, 117 pp
Discurso à Geração Lusitana, ed. do Autor, Sevilha, 1935, 100 pp
Caminho de Siegfried, poemas, Edições Momento, Lisboa, 1936, 132 pp
Bodas Helénicas (reedita «Bodas de Vinho»), ed. do Autor, Lisboa, 1943, 89 pp
Itinerário Sentimental de los Portugueses en Sevilla, tradução do português por José Andrés Vásquez, Edições SPN, Lisboa, 1944, 77 pp
Vida Voluptuosa, contos, Editorial Gleba, Lisboa (1945), 175 pp
Tu e o Teu Corpo, poemas, ed. do Autor, 31 pp, Lisboa, 1946
Sortilégio Senegalês, Livª Tavares Martins, Porto, 1947, 227 pp com ilustrações, 4ª ed., 1949
Baladas de Sevilla en Primavera, poemas em castelhano, ed. do Autor, Sevilha, 1949, 70 pp
Trópico de Cancer, versos, ed. Portugália, Lisboa, 1949, 91 pp
Colóquio com a Morte - Ensaio sobre a Semana Santa sevilhana, ed. Portugália, Lisboa, 1951, 45 pp
Notícias de Anto e de Purinha – António Nobre ou a Poesia sob o signo da Morte e do Amor, ed. do Autor, Lisboa, 191 pp
Trajectória Sem Fim – Antologia poética com inéditos, Livª Portugal, Lisboa, 1956, 187 pp
O Primeiro Dia do Homem Fora do Paraíso, estudo, Edições Ática, Lisboa, 1960, 243 pp
Sevilha, Noiva de Portugal, estudo com desenhos e fotos, ed. SIT, Lisboa, 1963, 318 pp
Doce França – Crónica-Jornal, Livª Portugal, 1963, 211 pp
Escandalosamente Pura, romance, ed. Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1966, 226 pp; 2ª ed., s/d, com apresentação de Marques Gastão
Nono, Não Desejar a Mulher do Próximo, contos (reedita com emendas um texto de «Vida Voluptuosa», ed. Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1966, 241 pp
O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica – Uma posição sobre a crença, estudo, ed. Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1967, 86 pp
Não Quero Ser Herói, romance, ed. Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1970, 291 pp
Soldado, Volta!, plaquette poética, ed. Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1970, 3ª ed., 1971
Epístola a Job, plaquette poética, ed. Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1970.